Enio Rodrigues da Rosa[1]
No mais novo combate envolvendo a velha polêmica entre as forças sociais tradicionalmente conservadoras, defensoras da segregação das crianças, jovens e adultos com deficiência mental/intelectual nas escolas especiais e as forças progressistas (com certas ressalvas) que defendem a inclusão das crianças, jovens e adultos com deficiência (sem distinção e restrição) nas escolas do ensino comum, de que lado você se posiciona?
Se tivesse que simplesmente dar uma resposta sem maiores reflexões e análises das implicações que a complexidade desta problemática social histórica exige, no caso das crianças, jovens e adultos com deficiência da classe trabalhadora, eu diria que apesar de todos os problemas existentes, os locais mais apropriados para esses alunos, são as escolas públicas do ensino comum.
O equivoco desta discussão quando erroneamente polarizada entre dois extremos, sem considerar as inúmeras relações e mediações socioeconômicas, políticas, culturais, ideológicas e mesmo religiosas, é o fato dela deixar de ser uma problemática social produzida historicamente, cuja compreensão e o desvendamento dos fatos e interesses ocultos, dependem de análise cientifica comprobatória, ou pelo menos comparativa, e não de retóricas elaboradas com o objetivo de confundir e ganhar adesão da opinião pública. Quando os defensores das escolas especiais segregadas acusam que as escolas comuns e os professores dessas escolas não estão preparados para educar as crianças, jovens e adultos com deficiência, principalmente mental/intelectual, objeto maior da polêmica, eles fazem uma espécie de jogo de propaganda, procurando induzir a sociedade a acreditar que as escolas especiais e os professores especializados, dessas escolas, estão preparados para educar essas pessoas. Isso parece mais retórica de propaganda de mercadorias, procurando induzir que os consumidores comprem este e não aquele produto no supermercado. É importante ter claro que nós estamos falando de vidas humanas, de sujeitos concretos, de carne e osso.
As escolas especiais brasileiras são muito ruins e seus professores não estão preparados para educar as pessoas com deficiência. Segundo as palavras do Professor José Geraldo Silveira Bueno, "para que o professor especializado possa se constituir em agente de qualificação do ensino, é preciso que possua competência para enxergar, analisar e criticar o processo pedagógico de forma ampla e abrangente, e não só voltado para as dificuldades específicas do alunado sob sua responsabilidade".
Os resultados educacionais, pedagógicos e psicológicos até o momento alcançados com os alunos dentro dessas instituições, revelam que ali não se faz outra coisa a não ser treinar, adestrar as crianças, jovens e adultos para tarefas simples e repetitivas que se repetem ano após ano por praticamente toda vida das pessoas que lá entram e não saem mais.
O argumento sempre utilizado é que essas pessoas não conseguem fazer nada, além disso. Não adianta ensiná-las outra coisa, elas só vão até aí mesmo. É o determinismo biológico determinando o destino dessas pessoas. É mesmo possível que as pessoas com deficiência mental/intelectual tenham uma dificuldade um pouco maior do que outras pessoas, mas tentar explicar a realização de tarefas simples e repetitivas que nada contribuem para o seu desenvolvimento intelectual mais elevado, somente pela aparente limitação dos alunos sem deixar de considerar também a limitação das escolas especiais e seus professores especializados, é perverso porque escamoteia uma realidade que precisa ser colocada e enfrentada sem tergiversações neste debate, por vezes rasteiro e muito pouco instrutivo.
Nas primeiras décadas do século passado, Vigotski desferiu uma profunda crítica a concepção da educação especial tradicional que merece ser transcrita aqui para ilustrar o que foi dito anteriormente.
"Na educação tradicional das crianças com defeitos da psique, não há nenhum ápice de estoicismo. Neste caso, a educação está debilitada pelas tendências da lastima e da filantropia, está envenenada com o tóxico do estado doente e da debilidade. Nossa educação é doce; ela não toca no vivo ao aluno; na educação não há sal. Necessitamos idéias audazes e formadoras. Nosso ideal não é rodear de algodão o lugar do enfermo e cuidar dele, por todos os meios, das contusões, senão descobrir as vias mais amplas de sua super-compensação. Para isto necessitamos assimilar a tendência social deste processo. Mas na fundamentação psicológica da educação começamos a perder o limite entre a educação do filho do homem e do animal, entre a educação verdadeira e do adestramento. Voltaire, colocou, de brincadeira, que depois de ler J. J. Rousseau, ele gostaria de andar gatinhando. Este mesmo sentimento desperta quase toda nossa nova ciência sobre a criança: esta estuda com freqüência a criança que anda gatinhando. É curioso o que P. P. Blonski confessa: "Gosto muito de colocar a criança inofensiva na pose do animal de quatro patas; para mim, pessoalmente, isto sempre significa muito" (1925, p. 97).
Na realidade, a ciência sobre a criança ele somente a conhece nesta postura. A. B. Zalkind denomina isto como aproximação zoológica à infância (1926). Não há discussão: este enfoque é muito importante; estudar o homem como uma das espécies de animais, como um mamífero superior, é muito importante. Mas isto não é tudo e, inclusive, tampouco o principal para a teoria e a prática da educação. S. L. Frank, continuando a brincadeira simbólica de Voltaire, expressa que em oposição a Rousseau, a natureza em Goethe "não nega, senão que exige diretamente a posição vertical do homem; ela não chama a pessoa atrás em direção à simplificação e ao estado primitivo, senão que para frente, em direção ao desenvolvimento e à complexidade da humanidade " (VIGOTSKI, 2006, p. 61-62, grifos do autor).
Ainda segundo Vigotski, "A escola tradicional auxiliar segue a linha da menos resistência, acomodando-se e adaptando-se ao retardo da criança: a criança retardada domina, com enormes dificuldades, o pensamento abstrato, por isso a escola exclui de seu material tudo o que exige o esforço do pensamento abstrato e fundamenta o ensino no caráter concreto e na visualização. O princípio do domínio absoluto da visualização sofre, atualmente, uma séria crise, análoga à crise do mesmo princípio na escola geral. Na realidade, deve a escola seguir a linha da menor resistência e só adaptar-se ao retardo da criança? Não deve, pelo contrário, lutar contra o retardo, encaminhar o trabalho pela linha da maior resistência, quer dizer, em direção à superação das dificuldades no desenvolvimento da criança, criadas pelo defeito? (1997).
Deste modo, é muito deprimente constatar como as escolas especiais e os professores especializados que nelas trabalham procuram atribuir aos alunos com deficiência mental/intelectual as suas próprias limitações e incompetências para retirar essas crianças, jovens e adultos do nível de desenvolvimento em que se encontram, fazendo a passagem do pensamento concreto para o pensamento abstrato. Desta vez, para ilustrar, citarei uma passagem do livro de Leontiev, "O desenvolvimento do psiquismo".
"Para me bem fazer compreender, citarei uma pequena experiência que fiz numa escola de deficientes mentais. Tinha observado que os estudantes, para somar números, se serviam às escondidas dos dedos. Pedi então que me trouxessem alguns pires, dei dois a cada aluno e disse-lhes para os porem em cima da mesa quando respondiam. O resultado é que a maioria dos alunos foi incapaz de somar. Uma análise mais profunda mostrou que estes alunos tinham ficado de facto no estádio das operações exteriores do cálculo por unidades» e que não tinha ocorrido neles a passagem à etapa seguinte. Razão por que não podiam progredir em aritmética para lá da primeira dezena sem uma ajuda particular. Era preciso, por conseguinte, não fazê-los avançar, mas, pelo contrário, fazê-los regressar à etapa inicial das operações exteriores desenvolvidas, desenrolar correctamente estas operações e transportá-las para o plano verbal, isto é, edificar de novo neles a faculdade de contar de cabeça. A experiência mostra que uma tal reorganização dá bons resultados, mesmo com crianças bastante diminuídas mentalmente. Mas em caso de atraso pouco importante do desenvolvimento mental, isso permite superá-lo totalmente. Evidentemente que esta intervenção no processo de formação de operações mentais deve ter lugar no devido tempo, pois se não se percorrer uma dada etapa da formação de um dado processo este não se forma correctamente, a não ser por vezes, de modo absolutamente fortuito, ele não pode desenvolver-se normalmente, daí resultando a impressão de estarmos perante uma deficiência mental na criança, impressão sem fundamento na realidade" (1978).
Diante desta perspectiva, acredito que os defensores das escolas especiais, muito mais preocupados com os seus interesses econômicos, políticos e profissionais corporativos, para poder fazer a critica com propriedade às escolas públicas do ensino comum e seus respectivos professores por falta de preparo, deveriam antes comprovar com dados científicos qual é a real e verdadeira formação que estão dando para os alunos com deficiência, principalmente no caso das escolas especiais que integram a rede do movimento apaeano, após mais de meio século de atuação no Brasil.
Hoje, algumas pesquisas acadêmicas estão revelando que a grande maioria dos alunos matriculados nessas escolas especiais, ou não possuem deficiência mental/intelectual como se atribui, ou são alunos com outras deficiências que não deveriam estar ali. Essas crianças, jovens e adultos foram vítimas da aplicação indiscriminada e dos resultados duvidosos dos testes psicológicos, cujo efeito prático foi a "expulsão" dessas pessoas das escolas públicas do ensino comum para as escolas especiais.
De acordo com José Geraldo Silveira Bueno, "O ensino especial também tem mantido sistematicamente grande parcela de seu alunado nos mesmos níveis inferiores de escolarização, sob a alegação de que esta, por suas próprias características, não possui condições para receber o mesmo nível de escolarização que as crianças normais. Crianças tem sido mantidas por anos a fio no ensino especial sem que se consiga mínimos resultados com relação à sua escolarização". O mesmo autor ainda acrescenta: "Aí é que a educação especial tem se aproximado do ensino regular: na falta absoluta de acompanhamento, avaliação e aprimoramento da qualidade do ensino, quer no nível dos sistemas de ensino, ou das instituições escolares e da sala de aula. Com relação ao ensino especial, parece-me que a defesa, em princípio, de sistemas segregados de ensino, pouco tem servido para a melhoria da qualidade e da ampliação de oportunidades de incremento da escolarização e de inserção social do alunado que a ela tem sido encaminhado. Nesse sentido, a educação inclusiva, como meta, como norte de uma política de educação especial, não merece ser contestada".
Por isso, matricular essas crianças, jovens e adultos com deficiência mental/intelectual nas escolas públicas do ensino comum, significa devolver a elas o seu lugar de fato e de direito, de onde nunca deveriam ter sido retiradas.
Porém, parte das críticas que os defensores das escolas especiais fazem de que as escolas públicas do ensino comum não estão preparadas, de fato, encontra respaldo na realidade material concreta. Como pedagogo que trabalho em escola pública do ensino comum, percebo diariamente o quão a escola no seu todo e os professores e demais funcionários não estão preparados para lidar e enfrentar as situações que envolvem, não só as pessoas com deficiência, mas com outras características "desviantes" fora do padrão supostamente normal. Para os defensores das escolas especiais que não conseguem ver nos sujeitos com deficiência (principalmente aqueles com deficiência mental/intelectual) nada além de meros "coitadinhos", "pobrezinhos" indefesos e merecedores de compaixão, a transferência para as escolas públicas do ensino comum, com seus professores despreparados, representa um ato de agressividade, uma vez que isso significa retirá-los do ambiente seguro e protegido e colocá-los num espaço onde eles seriam submetidos a todas as formas de violências e agressões simbólicas (preconceito, discriminação, etc.).
Contrariamente, eu entendo que é justamente porque as escolas públicas do ensino comum e seus professores não estão preparados que as pessoas com deficiência devem ser ali matriculadas. Resumidamente, minhas justificativas para isso são:
1 - Do ponto de vista histórico, um dia as escolas especiais precisaram ser criadas e seus professores também precisaram ser preparados para trabalhar com as crianças, jovens e adultos com deficiência. Isso quer dizer que essas e outras pessoas com deficiência nem sempre tiveram escolas especiais e professores especializados preparados, o que também significa, por conseguinte, que ali elas não precisam ficar eternamente, pois outros locais podem ser preparados;
2 - Assim como as escolas especiais e os professores dessas escolas não foram preparados sem pressões sociais, da mesma forma, também as escolas públicas do ensino comum e seus professores, igualmente, também não serão preparados sem pressões. Portanto, trabalho aqui com a teoria da curvatura da vara. Se a vara está inclinada para um extremo e o objetivo é encontrar um ponto de equilíbrio, então, precisamos forsá-la a para o outro extremo, pois quando soltarmos ela encontrará o ponto de equilíbrio desejado. É somente na pressão política e social que as escolas públicas e os professores irão se preparar;
3 - É deste enfrentamento político, pedagógico, educacional e psicológico que as relações e mediações travadas entre as pessoas com deficiência, os alunos sem deficiência, os professores, os demais funcionários das escolas e os familiares, que possibilitará o surgimento de novas práticas envolvendo as pessoas com e sem deficiência. É claro que não tenho a percepção ingênua da maioria dos defensores da inclusão de que isso se dará em perfeita harmonia, onde todos viverão juntos simplesmente porque as diferenças naturais e sociais devem ser respeitadas.
Brevemente, eu quero mostrar o estrago que a segregação pode trazer para a vida das pessoas, quando levada ao extremo. Para isso, vale a pena trazer aqui uma fala de Leontiev (1978), um dos colaboradores de Vigotski na formulação dos pressupostos teóricos da Psicologia Histórico Cultural. Segundo ele, quando uma criança chega no mundo, a única aptidão inata que ela trás é a aptidão para adquirir outras aptidões que são especificamente humanas (linguagem, consciência, pensamento, memória, gosto, paladar, etc.).
Para demonstrar isso, não vou ficar aqui recorrendo a grandes elaborações teóricas. Vou tomar dois exemplos muito simples e de fácil compreensão por qualquer pessoa, por mais leiga que seja sobre o assunto. Em primeiro lugar, "Está hoje estabelecido com toda a certeza que se as crianças se desenvolverem desde a mais tenra idade, fora da sociedade e dos fenômenos por ela criados, o seu nível é o dos animais". (LEONTIEV, 1978). Um exemplo recente foi descoberto na Sibéria. "Uma menina de cinco anos "criada por vários cães e gatos" e que se comunica apenas na linguagem dos animais foi descoberta em Tchita, na Sibéria Oriental, anunciou nesta quarta-feira a polícia local. A criança, encontrada em um apartamento decrépito onde também viviam seus pais e avós, que não cuidavam dela, não era autorizada a sair, nunca aprendeu a falar e se comunica com os outros latindo. "A menina foi criada por cães e gatos durante cinco anos, e não saiu de casa uma vez sequer", ressaltou a polícia de Tchita em comunicado. Quando foi encontrada, "a menina pulou em cima das pessoas como um cachorrinho", acrescentou. (http://ultimosegundo.#ig.com.br/, 27/05/2009).
Em segundo lugar, citando o caso de uma criança de uma tribo paraguaia extremamente primitiva que ainda vivia como nômade, Leontieve demonstra: "Noutra vez, o etnólogo francês Vellard encontrou uma menina de dois anos num acampamento abandonado pela tribo. Confiou a sua educação à mãe dele. Vinte anos mais tarde (em 1958) ela em nada se distinguia no seu desenvolvimento das intelectuais européias. Dedica-se à etnografia e fala francês, espanhol e português". (LEONTIEV, 1978).
No primeiro caso, uma situação atual, revela que a criança mantida em local segregado, afastada do convívio com outras pessoas, não conseguiu desenvolvimento mental além dos animais que eram seus "companheiros" de relacionamento, embora seja no seu biótipo físico uma pessoa, deformada evidentemente, inclusive na própria constituição físico corporal. No segundo caso, uma criança pertencente a uma tribo bastante atrasada, em comparação com povos "civilizados", é retirada de um ambiente com pouco nível de desenvolvimento cultural e, entregue aos cuidados de pessoas culturalmente mais instruídas, consegue fazer um processo de aprendizagem e desenvolvimento normal, chegando ao ponto de não se distinguir de outras intelectuais que apropriaram-se dos resultados da cultura historicamente produzida pela humanidade.
Desses dois exemplos apresentados, sumariamente, podemos retirar o primeiro ensinamento de significativa importância. De fato, as características biológicas que as crianças trazem não são suficientes para elas viverem no mundo humanizado, no mundo da cultura. Isso por uma razão muito simples. Diferentemente dos animais, cujas experiências da espécie são transferidas por herança biológica por meio de sucessivos processos evolutivos, a sobrevivência dos animais depende basicamente de dois fatores naturais: a bagagem genética que propicia determinadas condições naturais instintivas para dar conta das necessidades de adaptação no ambiente e as condições proporcionadas pela própria natureza.
Com os seres humanos isso é totalmente diferente. Para não alongar a exposição, penso que um exemplo dado por Leontiev é mais útil nesta compreensão. Demonstrando que a transmissão da cultura só pode ocorrer através da mediação das pessoas mais experientes, Leontiev escreve: "Se o nosso planeta fosse vítima de uma catástrofe que só pouparia as crianças mais pequenas e na qual pereceria toda a população adulta, isso não significaria o fim do gênero humano, mas a história seria inevitavelmente interrompida. Os tesouros da cultura continuariam a existir fisicamente, mas não existiria ninguém capaz de revelar às novas gerações o seu uso. As máquinas deixariam de funcionar, os livros ficariam sem leitores, as obras de arte perderiam a sua função estética. A história da humanidade teria de recomeçar". (LEONTIEV, 1978).
Esta é a realidade, pois por mais que se critique o uso da palavra transmissão, o que nós fazemos com os nossos filhos, o que as escolas fazem com os alunos, não é outra coisa se não transmitir a eles os legados culturais (na forma de estudos sistematizados ou não), produzidos e deixados pelas gerações precedentes. Mas, os teóricos da Psicologia Histórico Cultural alertam para outro fator também muito importante: as atividades organizadas e realizadas com o uso de instrumentos e signos também são processos de mediações muito importante no processo de formação das funções psicológicas superiores. Vigotski "[...] atribuía uma importância fundamental ao conceito de atividade mediadora, esclarecendo que esse conceito refere-se a vários tipos de mediação na relação entre o indivíduo e a realidade, sendo o uso de ferramentas e o uso de signos dois casos particulares de atividade mediadora. Assim como as ferramentas são mediadoras na ação do homem sobre objetos, são necessárias ao controle da realidade material, os signos são mediadores na ação do indivíduo sobre si mesmo ou sobre outros indivíduos, isto é, são mediadores necessários ao controle do comportamento humano e dos processos mentais" (DUARTE, 2001 a, p. 209).
Uma das ferramentas simbólicas mais significativas no processo de formação dos sistemas funcionais cerebrais complexos, sem nenhuma dúvida é o uso da linguagem. Vejamos o que diz Luria, outro importante teórico da Psicologia Histórico Cultural:
"Ao aprender atividades complexas com objetos, corrigindo seu próprio comportamento através de relações sociais e adquirindo sistemas lingüísticos complexos, as crianças são levadas, invariavelmente, a desenvolver novas motivações, criar novas formas de atividade consciente e propor novos problemas. A criança substitui suas brincadeiras iniciais de manipulação por outras que envolvem temas e papéis inéditos. Aparecem então regras socialmente condicionadas para essas brincadeiras que se tornam regras de comportamento. Sob a influência da linguagem dos adultos, a criança distingue e estabelece objetivos para seu comportamento: ela repensa as relações entre os objetos: ela imagina novas formas de relação criança-adulto. (LURIA, 1990, p. 25).
Portanto, as teses segundo as quais as pessoas com deficiência (de qualquer tipo e grau de comprometimento), aquelas aparentemente com dificuldades de aprendizagem, ou com outros distúrbios, são seres tão diferentes que necessitam de métodos de abordagem e compreensão diferentes por causa das suas particularidades específicas, não encontram respaldo na Psicologia Histórico Cultural. O processo de aparecimento e desenvolvimento das faculdades físicas e mentais é igual para qualquer pessoa, desde que se reconheçam as potencialidades humanas latentes que precisam ser despertadas, bem como se descubra as vias remanescentes que necessitam ser corretamente trabalhadas para o encadeamento das conexões neuronais ou motoras. Aliás, é preciso que se diga: é procurando atribuir características biológicas tão particulares que os defensores da segregação justificam a permanência dessas pessoas em locais segregados, supostamente preparados para ensiná-las.
Isto quer dizer que, as crianças, jovens e adultos mantidos em locais segregados, relacionando-se e trocando experiências entre pessoas com o mesmo nível de desenvolvimento mental, muito pouco contribui na verdadeira formação humana, quando se compreende que a formação humana vai muito além do treinamento para a realização de tarefas simples e repetitivas. Quanto mais pobres e limitadas são as atividades pedagógicas e quanto mais pobres e limitadas são as relações sociais estabelecidas entre as pessoas, menos possibilidades de despertar as conexões neuronais, que são necessárias na formação dos sistemas cerebrais funcionais complexos, responsáveis pelas atividades psicológicas superiores especificamente humanas.
Assim, por mais despreparadas que as escolas públicas e seus professores estejam, acredito que as relações sociais que as pessoas com deficiência estarão submetidas nas trocas com os alunos sem deficiência, assim como com os professores e demais funcionários, serão mais ricas do que aquelas que são estabelecidas nas escolas especiais segregadas. No mínimo, os alunos com deficiência serão retirados de um ambiente preparado para reforçar a sua deficiência e serão colocados num local muito mais desafiador, nem que seja para aprender a lidar com os conflitos com os seus colegas. Se tem uma coisa terrível na educação de pessoas com deficiência, é o uso da pedagogia que reforça a sua invalidez, que procura fazer da deficiência uma desgraça, uma barreira intransponível.
Se as próprias escolas especiais e seus professores não conseguem ensinar para os alunos com deficiência mental/intelectual, nada além de tarefas que só reforçam ainda mais a deficiência, consequentemente, elas não podem cobrar isso das escolas públicas do ensino comum e seus professores, porque eles ainda não estão preparados (o que não deixa de ser positivo, pois poderão ser formados noutra perspectiva).
É verdade que as escolas públicas precisam melhorar e muito, disso eu não tenho dúvida. E elas precisam fazer isso não somente na educação dos alunos com deficiência, ou para dar qualquer satisfação às escolas especiais, mas porque elas são a única alternativa de educação escolar para os filhos da classe trabalhadora. E aqui tem outra coisa muito importante: a resistência que se verifica dentro das escolas públicas, da parte de uma parcela significativa de professores, em relação a presença das pessoas com deficiência, se explica porque, quer queiram ou não, a inclusão representa uma espécie de invasão da ralé nas escolas públicas. Esses professores que no mais das vezes não se reconhecem como membros da classe trabalhadora, equivocadamente, miram para o lado errado e elegem os chamados alunos problemas como seus inimigos de classe.
Por isso, o que eu estou defendendo aqui é o fortalecimento da escola pública de qualidade para qualquer criança, jovem ou adulto, com ou sem deficiência da classe trabalhadora. Quando os defensores das escolas especiais mantidas por instituições privadas filantrópicas (o que não quer dizer necessariamente sem lucro, ainda que seja político), alegando o direito de escolha dos pais/mães, o que eles estão na realidade defendendo é a manutenção de uma rede privada que, sob o pretexto de atender interesses públicos, atende, sim, os interesses privados. Mas verdade seja dita: se esta rede conseguiu se constituir em praticamente todo o Brasil, não foi por outra razão se não por omissão do próprio Estado que, em vez de assumir a educação das pessoas com deficiência, principalmente mental/intelectual, preferiu transferir esta responsabilidade para a filantropia que se propagou com o incentivo do dinheiro do orçamento público da União, Estados e municípios.
Diante disso, se tivesse que existir uma escola chamada especial para educar pessoas extremamente comprometidas, com o apoio de uma pedagogia verdadeiramente cientifica que não apenas atue para reforçar a deficiência, possibilidade que até se admite em último caso, esta escola deve ser pública. Mas, ao dizer que até admito uma escola especial pública para casos extremos, eu não estaria, de um lado, reforçando o discurso dos defensores das escolas especiais e, de outro, negando a possibilidade das pessoas com deficiência frequentarem as escolas públicas do ensino comum?
Não, porque parto de dois pressupostos que me afastam das duas perspectivas teóricas que alimentam a polêmica que venho procurando mostrar as suas lacunas. Quando admito a possibilidade da existência de uma escola chamada especial, admito a possibilidade da existência de algumas pessoas com graus de deficiência tão comprometidos a ponto de compreender que elas não conseguiriam, dentro de uma sala de aula do ensino comum, apropriar-se dos conhecimentos científicos, filosóficos e artísticos que entendo ser da responsabilidade da escola pública do ensino comum transmitir. E aqui eu também me distancio daqueles que defendem que a escola pública não passa de um simples local onde as crianças, jovens e adultos, com ou sem deficiência, precisam apenas aprender a conviverem juntos.
Dizer que a escola pública deve ser reduzida a um simples local de convivência, é esvaziar a escola pública do seu conteúdo primordial, principalmente para os filhos da classe trabalhadora. As elites garantem para os seus filhos os conteúdos científicos, artísticos e filosóficos nas escolas privadas de excelência, pagas a peso de ouro, ou através da contratação de preceptores contratados com elevados custos, mas e as crianças, jovens e adultos da classe trabalhadora, onde vão conseguir esses conhecimentos tão importantes que certamente farão a diferença nas suas vidas? Alguns dizem: mas isso não é o mais importante. De fato, isso só não é o mais importante para quem já conseguiu.
Além do mais, por trás desta ideia de que os conhecimentos científicos não são importantes, esconde-se outra tão perversa quanto aquela defendida pelos professores das escolas especiais: as crianças, jovens e adultos não conseguem mesmo aprender, por isso, basta a socialização. Ou então, porque sacrificá-las com estudos tão pesados, pois elas não vão mesmo utilizá-los na vida. Por isso, se os conhecimentos científicos, artísticos e filosóficos são importantes para as crianças, jovens e adultos sem deficiência, muito mais importantes eles são para as crianças, jovens e adultos com deficiência, uma vez que isso é uma possibilidade de compensar os prejuízos ocasionados pela deficiência.
Portanto, se existe alguma escola que poderá garantir esses conhecimentos para essas pessoas, hoje e no futuro, esta escola só pode ser a escola pública. Por isso, minha defesa da atual política do MEC/SEESP, não é pela sua concepção filosófica burguesa dos direitos humanos, que enfatiza o individualismo e a competição entre as pessoas, segundo os méritos e competências de cada um, mas pela clara opção de fortalecimento da escola pública. E isso não é pouco numa sociedade cuja essência é a propriedade privada, onde a própria educação tornou-se mercadoria. Retirar a educação pública e a escola pública desta condição e colocá-la a serviço da transformação social é uma tarefa de todos nós educadores e dos demais trabalhadores, que precisam garantir educação escolar pública de qualidade para os seus filhos, com ou sem deficiência.
Neste debate sobre a inclusão educacional das pessoas com deficiência, principalmente no caso das pessoas com deficiência mental/intelectual, os dados estatísticos já levantados e mesmo os estudos científicos também já realizados, comprovam que nem as escolas públicas do ensino comum e muito menos as escolas especiais estão preparadas para educaras pessoas com deficiência. Porém, a diferença fundamental aqui reside justamente no fato de que as escolas especiais, no caso daquelas mantidas pelas APAES, já estão atuando há mais de meio século no Brasil, enquanto as escolas públicas do ensino comum estão ainda engatinhando, dando os seus primeiros passos neste processo.
Nesta polêmica, se tem escolas que já tiveram tempo mais do que suficiente para apresentarem resultados educacionais, pedagógicos e psicológicos, para além de um ensino que não faz outra coisa a não ser apenas reforçar a deficiência, através de relações que procuram fazer dos alunos eternos bebês crescidos, estas escolas são as escolas especiais. As escolas públicas do ensino comum devem ser cobradas pelo que ainda precisam fazer. Entretanto, as escolas especiais mantidas por instituições privadas filantrópicas, devem ser cobradas pelo que deixaram de fazer por mais de 60 anos de atuação. Quem sabe daqui a 60 anos de experiências já acumuladas pelas escolas públicas do ensino comum, na educação das pessoas com deficiência, seja possível fazer esta discussão a partir de dados comparativos mais concretos.
Hoje, estou convencido de uma coisa: os resultados até agora apresentados pelas escolas especiais, não dão credibilidade e não autorizam as críticas contra o despreparo das escolas do ensino comum e seus professores. Antes de cobrar, os defensores das escolas especiais segregadas, deveriam ter ao menos a honestidade de admitir que a educação ofertada nessas instituições, não faz outra coisa a não ser ensinar aos alunos a realização de algumas tarefas rudimentares, através de métodos mecânicos e repetitivos que só reforçam ainda mais a deficiência como barreira intransponível.
Para concluir, quero deixar registrado meu protesto em virtude de uma fala do presidente da Federação das APAES do Estado do Paraná, cujo conteúdo ou vi numa rádio do município de Cascavel. Nela, na crítica que fazia a Resolução 13 do Conselho Nacional da Educação, numa atitude oportunista e com o objetivo de estender a ação das APAES para as outras áreas das deficiências, o dirigente também falou em nome das pessoas cegas, surdas e com deficiência física. Ao menos de nossa parte - as pessoas cegas e de visão reduzida associadas da ACADEVI, o dirigente apaeano está desautorizado a falar. Somos sabedores das dificuldades que as pessoas cegas e de visão reduzida enfrentam nas escolas públicas do Estado, com a falta de livros adaptados em braile ou com caracteres ampliados, mesmo assim entendemos que ali é o lugar deles. Só para deixar claro, com exceção da escola especial do Instituto Paranaense de Cegos (IPC), que entendemos que já deveria ter sido fechada/transformada em centro educacional especializado, todos os alunos cegos e de visão reduzida, estão matriculados nas escolas do ensino comum, sejam elas públicas ou particulares, municipais ou estaduais, da educação infantil até o ensino superior.
Enquanto entidade que age coletivamente no sentido de demonstrar a validade social, não só das pessoas cegas e de visão reduzida, mas de todas as pessoas com deficiência, inclusive aquelas com deficiência mental/intlectual, não podemos aceitar que, na defesa de interesses econômicos, políticos e profissionais corporativos, a imagem da pessoa com deficiência como sofredora e objeto de comiseração seja utilizada e reforçada através da mídia. O que os defensores da segregação fazem, principalmente nesses momentos, é explorar o sentimento mítico religioso que ainda estão vivos numa parcela considerável da sociedade, procurando tirar proveito próprio em nome das pessoas com deficiência. Aliás, se eu tivesse a pretensão de utilizar aqui um argumento jurídico, poderia afirmar que o uso negativo da imagem da pessoa com deficiência com esta finalidade, é contrário a Convenção da ONU sobre os direitos das pessoas com deficiência, ratificada no Brasil como emenda constitucional. A rigor, a exposição e a exploração da imagem das pessoas com deficiência, com fins de obtenção de doações, lucros ou em campanhas depreciativas que associe a imagem a fatos negativos, se constitui crime. Ainda, registro que, embora a minha intenção não tenha sido produzir um texto a luz do rigor acadêmico, procurei demonstrar com algumas citações que não parto apenas das experiências que já acumulei como pessoa cega e militante do movimento das pessoas com deficiência, ou de meras suposições e especulações sobre o assunto, apesar de reconhecer que não atuo nesta área, o que também não me desautoriza de refletir e problematizar a questão.
Algumas das questões aqui pontuadas já constam de outros textos que já circularam em outros momentos, respondendo necessidades políticas pontuais específicas. Como se trata de um texto preliminar que tem por objetivo assinalar algumas questões que normalmente não aparecem nesta polêmica, espero que os apontamento sirvam de contribuição na perspectiva de ampliar as nossas reflexões sobre o assunto que muito ainda tem para ser explorado, do ponto de vista político e teórico. Um esclarecimento: embora eu participe da ACADEVI, do COEDE e da APP Sindicato, as questões levantadas neste texto refletem o meu pensamento e são de minha responsabilidade.
Cascavel, agosto de 2009.
REFERÊNCIAS:
BUENO, José Geraldo Silveira. Educação especial brasileira: integração/segregação do aluno diferente. São Paulo, EDUC/PUCSP, 1993.
DUARTE, Newton. Educação escolar, teoria do cotidiano e a escola deVigotski - 3.ed.rev. e ampl. - Campinas SP: AutoresAssociados, 2001 (Coleção polêmicas do nosso tempo: v. 55).
__________. Vigotski e o "aprender a aprender": crítica às apropriações neoliberais e pós-modernas da teoria vigotskiana. 3. ed. Campinas: Autores Associados, 2004.
LEONTIEV, Aléxis. O desenvolvimento do psiquismo. Lisboa: Horizonte, 1978.
LURIA, A. R. Desenvolvimento Cognitivo: seus fundamentos culturais e sociais; Tradução Fernando Limongeli Gurgueira. - São Paulo: Ícone, 1990.
VIGOTSKI, L. S. Fundamentos de Defectologia. Obras completas. Tomo V. Havana: Editorial Pueblo y Educación, 1997.
_________. O defeito e a compensação. In: Pessoa com deficiência na sociedade contemporânea: problematizando o debate/organização do Programa Institucional de Ações Relativas às Pessoas com Necessidades Especiais (PEE). Cascavel, PR: Edunioeste, 2006.
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